sexta-feira, 18 de abril de 2014

Memórias de abuso sexual: é possível criá-las?

A falsa recordação de violência é um tema vastamente discutido por neurologistas, psicólogos e juristas. Ao site de VEJA, especialistas explicam a mecânica da memória e mostram como, para nós, lembranças verdadeiras ou mentirosas têm o mesmo impacto

Rita Loiola
Woody Allen e Mia Farrow com os filhos: para o cérebro, todas as memórias são iguais, sejam elas verdadeiras ou não (Time & Life Pictures/Getty Images)
"Quando tinha 7 anos, Woody Allen me pegou pela mão e me levou a um pequeno espaço mal iluminado do segundo andar de nossa casa. Ele disse para que eu deitasse com a barriga para baixo e brincasse com um trem elétrico do meu irmão. Então ele me agrediu sexualmente", afirma Dylan Farrow, filha adotiva do diretor e da atriz Mia Farrow, em um texto publicado no início de fevereiro no site do jornal The New York Times. Foi uma das primeiras vezes em que Dylan, hoje aos 28 anos, falou publicamente sobre o episódio ocorrido em 1992. Na época, a acusação foi investigada pela polícia com a ajuda de especialistas do Hospital Yale-New Haven, da Universidade Yale, nos Estados Unidos, que não comprovaram o abuso. No último dia 7, no mesmo jornal, Woody Allen negou o crime e acusou Mia de manipular as lembranças da filha.

Mais de duas décadas depois, o caso ainda divide a opinião pública. Seria possível que as memórias de Dylan fossem falsas? O tema é largamente discutido na psicologia jurídica. Desde os anos 1980, juristas e psicólogos perceberam que um dos recursos usados em litígios conjugais é a implantação de memórias falsas de abuso sexual nos filhos. No Brasil, estimativas de psicólogos ligados a varas de família indicam que até metade dessas acusações feitas durante divórcios conflituosos não são verdadeiras.

"Isso acontece quando um dos cônjuges tenta denegrir a imagem do outro. Trata-se do ataque mais perverso que pode ocorrer”, afirma o psicólogo Jorge Trindade, presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica. “Para quem acredita ter sofrido uma violência, verdadeira ou não, o impacto emocional é o mesmo: terrível."

Mecânica da recordação — Desde o início do século XX, estudos como o do psicólogo francês Alfred Binet, considerado pioneiro em testes de inteligência, indicam que a memória é formada por distorções. Nos últimos trinta anos, pesquisas comprovaram que grande parte das nossas lembranças é forjada. Recordações, reais e falsas, e esquecimentos são os elementos que, combinados, formam a memória. Esse é o funcionamento padrão das lembranças, em um cérebro normal. Ele faz de nossas recordações algo flexível e maleável para que o ser humano aprenda coisas novas, raciocine, tenha criatividade para enfrentar as situações do presente e inteligência para compreender o passado. Combinamos eventos, fatos, sons, imagens, nossos ou alheios, o que nos possibilita viver o dia a dia. É o que acontece quando preenchemos mentalmente uma frase com palavras que nosso interlocutor deixou de dizer. No futuro, provavelmente, a lembrança será da sentença inteira, uma falsa recordação que auxilia a conectar episódios vividos. Tempo e influências externas tingem a memória, tornando-as adequadas ao momento vivido. 

Menores de 6 anos são mais suscetíveis a criar falsas lembranças, porque, nessa idade, eles ainda não distinguem fantasia e realidade. Mentiras de abuso sexual normalmente são sugeridas por algum adulto que tenha proximidade afetiva e seja percebido como autoridade. Nesse papel entram pais, professores, amigos mais velhos, conselheiros tutelares ou profissionais de saúde. Na maioria das vezes a sugestão é intencional, mas também pode ser feita sem dolo. É o caso da formulação de questões que mais afirmam do que interrogam, e que têm influência na formação das reminiscências. "A forma como uma pergunta é feita vai influenciar a resposta e pode, inclusive, contaminar a memória", afirma a psicóloga Lilian Stein, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). "Com o tempo, nos lembramos, de fato, de coisas que não aconteceram."

Como confirmar o abuso — Denúncias de violência sexual infantil são difíceis de comprovar. A maior parte dos casos acontece sem testemunhas, são cometidas por pessoas próximas à criança e não deixam marcas físicas — o relato da vítima é a única evidência. Como as lembranças são formadas por um sistema dinâmico e suscetível a mudanças, não existe um método confiável para averiguar sua veracidade. O instrumento recomendado são avaliações e entrevistas, feitas por psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras e promotores. Uma criança que é denunciada como vítima de violência sexual tem pelo menos sete encontros com esses profissionais, até chegar ao juiz.

"As perguntas são abertas, para a criança poder falar qualquer coisa ou mesmo não falar. Perguntas do tipo 'sim ou não' ou 'certo/errado' são a última opção", afirma Cátula Pelisoli, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Adolescência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Alterações fisiológicas medidas em um detector de mentiras ou em um teste poligráfico não funcionariam nesse caso, porque a pessoa acredita na memória. Exames de neuroimagem também são descartados, pois o cérebro recria os mesmos padrões em casos verdadeiros e falsos."

Em alguns Estados americanos e em países como Dinamarca ou Finlândia, as entrevistas feitas em casos de suspeita de abuso são padronizadas. No Brasil, foi lançado em outubro de 2013 um instrumento que pode ajudar a distinguir memórias, resultado de pesquisas de doze juristas, psiquiatras e psicólogos do Rio Grande do Sul. O método, um questionário chamadoEscala de Alienação Parental, busca identificar o processo de induzir uma criança ou adolescente a detestar o pai ou a mãe. "Esses instrumentos apresentam um grau interessante de confiabilidade, mas ainda precisam ser mais estudados em casos de abuso sexual", diz Cátula.

De acordo com um estudo feito pelo psicólogo Antonio Serafim, do Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, os principais sinais de abuso são depressão, ansiedade e fobias. Meninas podem ter alterações no sono e na alimentação, além de apresentar erotização do comportamento, enquanto garotos mostram-se isolados, agressivos e com distúrbios de conduta. "Crianças com suspeita de abuso normalmente sinalizam dificuldade em lidar com as figuras abusadoras e demonstram insegurança", afirma Serafim.

Até Freud, o pai da psicanálise, confundiu-se acerca da memória de relatos de abuso sexual. No início de seus estudos, em 1890, ele formulou a hipótese de que suas pacientes histéricas teriam sido vítimas do crime. Essa ideia simplesmente desaparece em seus escritos após 1897, substituída pela fantasia incestuosa — em vez de sofrer abuso, as pacientes teriam apenas ilusões dessa violência. Pouco tempo depois, os pesquisadores perceberiam que não há meios de diferenciar, no cérebro, lembranças falsas das reais.

Falsas reminiscências em adultos — Embora crianças pequenas sejam mais suscetíveis à criação de memórias, o processo também acontece com adultos — e com alta frequência. Em 2005, um estudo da pesquisadora Lilian Stein descreveu a implantação de memórias em adultos. Sua equipe apresentou a cerca de 500 participantes uma lista de palavras que deveriam ser recordadas minutos depois. Em seguida, pediu para que os termos fossem marcados em folhas de papel. Nessa última etapa, os participantes selecionaram palavras que jamais apareceram nas primeiras listas, como aquelas semanticamente próximas ao assunto ou que resumiam o tema. Tratava-se de falsas memórias.

Momentos importantes da vida, como o nascimento de um filho ou a morte dos pais, podem ser invadidos por lembranças não verdadeiras tanto quando eventos banais. Em 1995, um das principais estudiosas do assunto no mundo, a psicóloga Elizabeth Loftus, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, verificou em um experimento que recordações emocionalmente fortes também podem ser implantadas. Para isso, ela recrutou 24 pessoas e, com a ajuda das famílias, apresentou a elas três eventos que teriam acontecido na infância. Dois deles eram reais, mas o terceiro, um episódio dramático em que a criança ficava perdida em um shopping, foi inventado pela pesquisadora. Após o relato, um quarto dos participantes afirmou lembrar-se do fato. "Na vida real, muitas pessoas são induzidas a lembrar-se de eventos múltiplos e impossíveis", afirma Elizabeth.

O que diz a neurociência — Nos estudos atuais de neurociência e neurobiologia, falsas lembranças são um tema central. Há décadas os pesquisadores perceberam que reminiscências estão distantes de ser como uma máquina fotográfica ou filmadora que registra os acontecimentos e os arquiva. "Memória não é uma gravação, mas sim a representação mental de um evento que ocorreu. E, como representação, não há diferença entre o que aconteceu e o que alguém acredita que aconteceu", afirma o neurocientista Martin Cammarota, pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Como parte dessa representação psíquica, há dados objetivos que podem ser verificados — como em uma foto. Já informações sutis passam despercebidas pelos sentidos. Aí entram as falsas lembranças, para completar os "brancos" do cérebro. Esse é o processo de armazenamento de qualquer uma de nossas memórias, seja ao completar uma palavra que o interlocutor deixou de dizer em um diálogo que aconteceu há poucos segundos, seja para reconstruir um evento de anos atrás.

Os estados emocional e físico também são essenciais na formação de lembranças. Estar ansioso, triste, alegre ou apressado pode manipular mesmo dados objetivos. "Quando falamos de falsas memórias, parece que elas são feitas de propósito. Mas elas fazem parte processo de recordar. Ser incorreta não quer dizer que não seja verdadeira", afirma Cammarota.

Como um processo composto de vários elementos, as lembranças não existem isoladamente. Dados do passado se misturam no momento em que uma memória está sendo formada. Essas lembranças são aquelas que ajudam a compreender o presente e projetar o futuro. No hipocampo, área do cérebro responsável pela memória, as reminiscências são reconstruídas, editadas e renovadas. E, a cada vez que evocadas, elas se modificam — novos elementos são perdidos ou incorporados.

"Recordações dependem do que esperamos delas. Ao contrário de uma foto ou de um documento com começo e fim, trata-se de sistemas dinâmicos, com um conteúdo que se modifica ao longo do tempo", diz o neurocientista. "Memórias não são estáticas no tempo nem no cérebro." Assim, longe de parecer um computador repleto de arquivos que poderiam ser acessados e abertos a qualquer momento, a memória é mais semelhante a um baralho. Ao escolhermos um naipe, várias outras cartas saem ao mesmo tempo. Em diversos estudos detalhando imagens de observações por ressonância feitos nos últimos anos, cientistas perceberam que lembranças vívidas produzem ampla ativação no cérebro, envolvendo áreas sensoriais, emocionais e executivas.

Em um artigo publicado em 2013 na revista The New York Review of Books, o neurologista britânico Oliver Sacks, professor da Escola de Medicina da Universidade de Nova York, elencou uma série de pesquisas que comprovam o quanto os seres humanos precisam desconfiar de suas memórias. Entre elas, as de violência sexual. "Não existe um modo pelo qual os acontecimentos do mundo possam ser transmitidos ou gravados diretamente em nossa mente; eles são experimentados e construídos de modo altamente subjetivo, que é diferente em cada indivíduo e reinterpretado ou revivido diferentemente a cada vez que são recordados", diz Sacks. "Com frequência nossa única verdade é a verdade narrativa, as histórias que contamos uns aos outros e a nós mesmos — histórias que reclassificamos e refinamos sem cessar."



domingo, 13 de abril de 2014



Reencarnação na Bíblia

Paulo da Silva Neto Sobrinho

O escritor José Reis Chaves, em seu livro “A Reencarnação Segundo a Bíblia e a Ciência” consegue, com grande clareza, provar que a reencarnação consta da Bíblia. No capítulo 3 – Através da Bíblia, diz:
“Há muitas pessoas que afirmam convictamente que a reencarnação não está na Bíblia. O autor deste livro também foi uma pessoa que pensava assim. Mas ela está lá, só que de um modo oculto, esotérico ou velado, sobre o que já falamos numa outra parte anterior deste livro”.“Quando Jesus disse que examinássemos as Escrituras, Ele quis dizer que nos aprofundássemos no estudo da Bíblia, para que pudéssemos compreender a sua mensagem”.“Portanto, não basta que nos informemos do conteúdo da Bíblia. É necessário que façamos um estudo profundo do seu conteúdo. E isso tem de ser feito por quem tenha estrutura para tal, ou seja, tenha um bom nível de instrução, seja inteligente e tenha dom para isso. É, pois, engano pensar que só um bispo, padre ou pastor sejam pessoas que entendam a fundo de Bíblia, embora encontremos entre eles grandes sumidades no assunto. Esses indivíduos, geralmente, pensam de maneira diferente da maioria dos padres e pastores sobre alguns textos bíblicos, embora, às vezes, sejam discretos em seus conhecimentos, pois têm de prestar obediência à hierarquia de suas igrejas. A nossa opinião é a de que o indivíduo só pode conhecer as Escrituras Sagradas, tendo liberdade de raciocínio e oportunidade, inclusive de comparar os textos bíblicos com os de outros livros sagrados de outras religiões, pois arquétipos junguianos estão, também, presentes nas literaturas de todas as escrituras sagradas, e não só da Bíblia”.
Iniciamos colocando a fala de José Reis Chaves por ser ele católico, para não dizerem que nós, os espíritas, estejamos distorcendo os fatos a nosso favor.
Recomendamos, inclusive, seu livro a todos que sinceramente buscam conhecer a verdade, principalmente aos que seguem: “Examinai tudo, conservai o que é bom” (1 Tes. 5, 21).
Neste livro encontramos várias passagens bíblicas, analisadas, pelo autor, sobre a reencarnação, nós iremos nos concentrar apenas em algumas que podemos encontrar no Novo Testamento.
Em Mateus 16, 13-14, temos: “Tendo chegado à região de Cesáreia de Felipe, Jesus perguntou aos discípulos: “Quem dizem por aí as pessoas que é o Filho do homem?” Responderam: “Umas dizem que é João Batista; outras, que é Elias; outras, enfim, que é Jeremias ou algum dos profetas”.Veja bem, se o povo pensava que Jesus poderia ser João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas é porque acreditavam que alguém que já havia morrido pudesse voltar como outra pessoa, razão da resposta. Entretanto, não tinham noção como isso poderia acontecer. Sendo João Batista contemporâneo de Jesus, não haveria a menor possibilidade d’Ele ser João Batista reencarnado. É a única ressalva que poderemos fazer a esse texto.
Outra passagem que podemos citar é a de João 3, 1-8, entretanto essa talvez seja a mais polêmica, porquanto as várias traduções e interpretações da Bíblia são divergentes quanto ao termo “nascer de novo”. Mas, mesmo assim a citaremos:
“Havia entre os fariseus um, chamado Nicodemos, dos mais importantes entre os judeus. Ele foi encontrar-se com Jesus à noite e lhe disse: “Rabi, bem sabemos que és um Mestre enviado por Deus, pois ninguém seria capaz de fazer os sinais que tu fazes, se Deus não estivesse com ele. Jesus respondeu: “Eu te afirmo e esta é a verdade; ninguém verá o reino de Deus se não nascer de novo”. Disse-lhe, Nicodemos: “Como pode nascer um homem já velho? Porventura poderá entrar de novo no seio de sua mãe e nascer?” Jesus respondeu: “Eu vos afirmo e esta é a verdade: se alguém não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus. O que nasce da carne e carne. O que nasce do Espírito é espírito! Não te admires do que eu disse: é necessário para vós nascer de novo. O vento sopra para onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem aonde vai. Assim é quem nasce do Espírito”.O que se pode deduzir do texto é que Nicodemos entendeu perfeitamente que era sobre nascer de novo, que Jesus estava falando, sua dúvida ficou apenas como isso poderia ocorrer.
Querem alguns que o nascer da água seja o batismo. Se for por que, então Jesus reafirma: O que nasce da carne é carne; o que nasce do Espírito é espírito. Perfeitamente coerente com o sentido de nascer da água, pois seu significado, à época, era de ser a origem da matéria. Vemos que toda a vida material, dela depende, e, especificamente nós os humanos, além de sermos mais água que carne, ficamos nove meses “dentro d’água” antes de nascermos de novo.
E, como afirmamos anteriormente, esta passagem é causa de longos e polêmicos debates.
Entretanto, encontraremos em Mateus (17, 10-13) a reencarnação de forma bem mais clara, senão vejamos: “Os discípulos lhe perguntaram: “Por que dizem os escribas, que Elias deve vir antes?” Respondeu-lhes: “Elias há de vir para restabelecer todas as coisas. Mas eu vos digo que Elias já veio e não o reconheceram, mas fizeram com ele o que quiseram.Do mesmo modo, também o filho do homem está para sofrer da parte deles. Então, os discípulos compreenderam que Jesus lhes tinha falado a respeito de João Batista”.Por que Elias não foi reconhecido? Porque agora animava outro corpo. Simples não?
Mas poderiam objetar: Jesus não afirmou que João Batista era Elias. Foram seus discípulos que pensaram assim. Certo! Mas em várias oportunidades Jesus demonstrou conhecer o pensamento das pessoas, por isso, se não disse nada em contrário é porque sancionava o que os discípulos estavam pensando.
As dúvidas poderão ser dissipadas nesta outra narrativa. Vejamos Mateus 11, 14-15: “E, se quiserdes compreendê-los, João é o Elias que estava para vir. Quem tem ouvidos, que escute bem”. Essa última frase deve ter sido dita por Jesus por que sabia que muitos não iriam aceitar o princípio da reencarnação, mas reafirmamos: quem quiser ouvir que ouça!
É sempre colocada a passagem de Hebreus 9, 27 como contrária à reencarnação, que diz: “Como está determinado que os homens morram uma só vez, e logo em seguida vem o juízo, assim o Cristo se ofereceu uma só vez para tomar sobre si os pecados da multidão, e aparecerá uma segunda vez, não, porém, em razão do pecado, mas para trazer a salvação àqueles que o esperam”.No texto não há nenhuma afirmativa contra a reencarnação. O que foi dito é o que acontece realmente, pois no presente corpo, em que o espírito nele habita, morrerá só uma vez, não temos nenhuma dúvida disso. Isso é válido para todas as vezes que ele (espírito) se reencarnar, ou seja, para cada reencarnação: somente uma morte.
Paulo da Silva Neto Sobrinho

Setembro/2001.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Fragmentos do descobrir-se negra

                                                             Imagem – Guilherme Vieira.


Por Gabriela Pires
Ser mulher negra é uma construção diária de identidade. A minha identidade negra começou a ser construída, infelizmente, há pouquíssimo tempo, mais ou menos há dois anos quando decidi prestar o vestibular. Fiz cursinho popular e concorri como cotista para o curso de Design Gráfico. Na época, prestei ainda com um pouco de relutância, parte por ter a sensação de estar tirando a oportunidade de outra pessoa que precisasse mais do que eu, e parte (este com um peso maior) por não me enxergar como negra. Lembro que essa dúvida não vinha apenas de mim, mas também dos meus pais e irmão.
Será que eu era “negra o suficiente”? Minhas neuroses gritavam pra mim dizendo que a universidade seria o lugar que nos olhariam e nos apontariam o dedo dizendo: você é negro, você não é negra… próximo! Ao entrar na entrevista para candidatos cotistas minhas dúvidas começaram a se diluir aos poucos. Lá estavam negros de todos os tons de pele e, para minha surpresa, de pele até mais clara que a minha.
E lá estava dona Vilma Santos de Oliveira, Yá Mukumby, a mulher que acendeu a primeira chama da minha consciência negra. Ela nos alertou, aos candidatos cotistas, quanto às dificuldades que poderíamos nos deparar na universidade, mas que apesar de tudo ela esperava que não nos embranquecêssemos frente a elas.
Apesar de termos nos visto uma única vez, gostaria de dizer Yá, esteja onde estiver, que eu a agradeço imensamente e eternamente, por começar a mudar a minha vida completamente.
A construção da identidade negra não é fácil. Construir, neste caso é, antes de tudo, desconstruir. Desconstruir preconceitos de si mesmo, desconstruir ideias que estão há muito tempo enraizadas, desconstruir sua história e até sua família. É principalmente, tomar consciência dos preconceitos que sofreu, e que sofre, sem tentar justificá-los.
Retomando alguns fatos passados, principalmente da minha infância, percebo o quanto o racismo, que muitas vezes partia de mim mesma ou de pessoas que amava, andou ao meu lado. Uma enxurrada de lembranças, de respostas às perguntas a tanto tempo deixadas de lado foram se desenrolando na minha frente, como num cinema.
Ao me lembrar de que já fui abertamente chamada de feia por ser negra, ao perceber que na adolescência o motivo de me relacionar amorosamente com pouquíssimos garotos não vinha do fato de eu ter amigas mais bonitas do que eu, ao me dar conta de que os apelidos que davam para meus cabelos não eram apenas brincadeiras, senti uma dor nunca antes sentida.
Meu pai é negro, minha mãe nasceu com a pele branca mesmo tendo também descendência negra e indígena. Eu sou negra de pele mais clara, mas na minha infância nunca consegui entender exatamente de que lado eu estava. Minha negritude foi tão podada pelo mundo a minha volta, que invejava e desejava ser como as crianças pretas que eu via brincando pela janela do Fusca marrom do meu pai. Me via pela metade, tentando buscar algo que sabia fazer parte de mim, mas que acreditava não ter direito de me apossar. Mas como invejar e desejar ser algo que eu sempre fui?
Ao mesmo tempo em que acredito que não é apenas a minha cor que pode me dizer o que sou ou deixo de ser, ainda tenho muitos momentos de dúvida. Olho quase todos os dias para meu rosto no espelho, ou para fotos antigas, procurando os traços que comprovam a minha negritude. Vejo fotos de mulheres negras e me comparo, buscando nelas, minhas próprias características.
Sempre que vejo algo relacionado à cultura negra e mesmo tentando construir minha negritude, ainda é muito difícil me sentir imersa neste mundo. E me pego novamente pensando como quando criança e me perguntando: será mesmo que eu tenho o direito de me apossar ao que me é de direito? Se é mesmo meu direito, o que me impede, que força é essa que não me deixa ser livre?
A tomada de consciência nos cobra um preço alto e bastante dolorido. É o primeiro passo dado num caminho sem volta. E apesar da minha consciência estar assim fragmentada e confusa como este texto, acredito que toda e qualquer construção é motivo de orgulho. E mesmo sem estar completa, fico feliz em ao menos ter encontrado os pedacinhos do meu mosaico. Com um pouco de cola, e talvez um pouco torto, um dia tudo ficará no lugar que deve estar.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

E a moça autista da novela, heim???


Eis que, de repente, minha caixa de email começou a lotar com mensagens de gente perguntando qualé a da moça da novela…
“Mas uma pessoa autista é daquele jeito mesmo?”
“Um autista pode namorar?”
“Pode isso, Arnaldo?”
(Não exatamente assim, mas meio por aí…)
Vamos começar esclarecendo  o seguinte:
1. A personagem da novela Amor à Vida, a Linda, NÃO É AUTISTA, ok? Apesar do autor “querer” retratar um indivíduo com Transtorno do Espectro Autista (TEA), as características demonstradas pela Linda no desenvolvimento da personagem são confusas e muitas vezes jamais se enquadrariam nas características de pessoas com TEA…
2. Pessoas autistas têm uma imensa variedade de características diferentes de indivíduo para indivíduo. Cada uma terá determinadas características diferentes das outras. Principalmente, há GRAUS variados de comprometimento desde um autismo leve (que a gente chama de “alto funcionamento”, porque geralmente não impede que a pessoa tenha uma vida relativamente “normal” e produtiva) até graus bem severos, em que há muito comprometimento das funções cognitivas, da comunicação e dos comportamentos.
3. O tratamento psicológico da Linda, como foi mostrado na novela, dá vontade de chorar. Sério: quantas vezes mesmo a gente viu o Psicologuinho-da-Novela em sessão terapêutica com a Linda? Eu contei três. E em NENHUMA delas o que foi mostrado chega nem em sonho perto do que é realmente o tratamento adequado para autismo. Teve uma cena em que o Psicologuinho-da-Novela segurava um cartaz  e dizia pra Linda: “Olha aqui, é assim que arruma a cama. Hoje você vai arrumar a cama, tá?” E daí a Linda ia lá e arrumava a cama… Not even in your wildest dreams que uma pessoa com comprometimento cognitivo severo – como era o que a personagem demonstrava naquele ponto da trama – ia adquirir uma habilidade tão complexa como arrumar a cama só de olhar pra um cartaz, ok??? ISSO NON ECXISTE!!!!
4. O desenvolvimento cognitivo, social e comunicativo da personagem deu um salto imenso desde que ela começou a ser tratada (em três sessões!) pelo Psicologuinho-da-Novela. Não é beeeeeeeeeeem assim que acontece… O tratamento do autismo é feito por diferentes profissionais: psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, T.O., neurologista, psiquiatra, e mais um monte de gente. E é um tratamento intensivo, todo o dia, o dia inteiro, e envolve também os pais e os cuidadores da criança. Se iniciado precocemente, quando a criança é bem pequenininha, o desenvolvimento pode ser quase igual ao de uma criança típica em algumas áreas. Mas quanto mais tarde o tratamento é iniciado, mais lento é o resultado.
5. Aí o Adêvogado-Gato apareceu, deu um monte de tintas, pincéis e cartolinas pra ela, e OLHA-SÓ!, praticamente CUROU o TEA da Linda. Só pra deixar BEM claro: amor só cura dor-de-cotovelo e DPPnB (Depressão Pós Pé-na-Bunda), ok???
(Disclaimer: Arteterapia é uma tipo de terapia de suporte válida e embasada em evidências. Dar um monte de guache prum indivíduo autista e falar “pintaê, meu filho!” NÃO É ARTETERAPIA!!!!)
Mas… mas… mas… Ora? Direis… Ouvir estrelas? Não, péra!
Mas afinal, O QUE É AUTISMO?

Bear with me.
O autismo é uma síndrome (aka, conjunto de sintomas) que compromete três áreasdo desenvolvimento:
a. a comunicação/linguagem fica seriamente comprometida, com grandes atrasos na compreensão e na produção da fala. Alguns autistas têm falas inadequadas e repetitivas (ecolalia), fora de contexto e muitas vezes desconectada da realidade.
b. a socialização: pessoas com TEA têm extrema dificuldade de manter contato social com outras pessoas. Bebês autistas não fazem contato visual e não conseguem manter atenção conjunta – se você apontar para um objeto, a criança vai olhar para a ponta do seu dedo e não para onde você está olhando e apontando. Muitas vezes os autistas relatam que não conseguem entender sinais de emoção nos outros, ou não conseguem entender e expressão suas próprias emoções e sentimentos. E a gente sabe que “são tantas emoções”… (Desculpa, não resisti.)
c. os comportamentos de pessoas autistas podem ser extremamente inadequados e inapropriados. Não é incomum acontecer comportamentos abusivos ou auto-lesivos, em que a pessoa pode se machucar sério se não for contida. Também é comum que pessoas dentro do espectro autista tenham interesses restritos por algum tipo de objeto ou assunto, e alguns casos raros isso pode gerar uma “super-especialização” ou alta habilidade, por exemplo, o cara se torna um virtuose do piano, ou é contratado pela CIA para descobrir códigos secretos. (Por favor, atenção ao adjetivo RARO. Obrigada.)
Então, de modo geral, o TEA (você vai achar por aí as nomenclaturas Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, Transtorno Global do Desenvolvimento ou Transtorno Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação, porque o nome varia de acordo com o manual que você usa, mas é tudo praticamente a mesma coisa) é uma condição que compromete todo o desenvolvimento do indivíduo, porque seres humanos têm a incômoda mania de aprender coisas uns com os outros. Mas se o bebê já nasce com uma dificuldade de manter contato visual e atenção conjunta, fica difícil ensiná-lo a falar mamãe, a pegar o nariz do papai, a identificar quando a tia está sorrindo e sorrir de volta… e assim por diante, comprometendo todo o desenvolvimento cognitivo do indivíduo. Provavelmente por isso – a gente ainda não sabe com certeza absoluta, mas a hipótese é boa – há uma grande comorbidade entre autismo e déficit cognitivo.
Well… Todo esse preâmbulo pra chegar no assunto da semana, que é: “Mas e aí, o que você acha da moça autista da novela namorar?”
DO JEITO QUE ESTÁ NA NOVELA, ou seja, uma MENINA com sério comprometimento cognitivo e de comunicação, se envolvendo com UM HOMEM adulto, com desenvolvimento típico, provavelmente bem mais velho, e sem o consentimento da família: NÃO.
Fácil assim.
[Que parte de "uma MENINA que não é capaz de tomar decisões plenas se relacionando com um HOMEM mais velho e em situação de poder privilegiada" você acham que pode ser discutida?]
Ok. Moving on.
Como o autismo (assim como a deficiência cognitiva) tem vários graus, e cada indivíduo se desenvolve de maneira única, as coisas têm que ser analisadas caso a caso com muito cuidado e bom senso. (I know. I know…)
Muitas coisas deviam ser levadas em consideração em casos como esse: qual o grau de comprometimento cognitivo dessa pessoa? Ela consegue tomar decisões sozinha? Ela tem habilidade para pesar todas as consequências de suas decisões? Qual o grau de desenvolvimento emocional dessa pessoa (ou das duas envolvidas)? Há uma relação de poder e de “capacidades” muito desbalanceada entre as pessoas envolvidas? Esse relacionamento deve ser constantemente monitorado pelos pais e cuidadores ou o casal pode ter certo grau de autonomia e “intimidade”? E mais um monte de coisas…
As pessoa com TEA não têm necessariamente o desenvolvimento emocional comprometido, é claro que elas podem se apaixonar e ter um relacionamento romântico e/ou sexual saudável com outra pessoa. Há várias pessoas autistas casadas, pais e mães de família, que se dão muito bem obrigada com ou sem apoio externo. Mas há sim, e muitos, casos em que o autista precisa de supervisão e apoio constante até na idade adulta, porque ele não tem habilidade de tomar decisões complexas sozinho, ou não consegue se comunicar com eficiência, ou mesmo porque seu grau de desenvolvimento cognitivo não permite que ele  seja considerado “capaz” legalmente.
Pois é, tem mais essa questão da “capacidade legal”: pessoas com comprometimento cognitivo são consideradas como crianças pela lei. É o tal do “incapaz”, ou seja, a pessoa é “incapaz” de consentir com o avanço romântico e sexual de outra pessoa. Essa lei foi feita para proteger crianças e pessoas que não têm habilidade cognitiva suficiente para tomar decisões adequadas. Por um lado ela ajuda, mas por outro, pode atrapalhar quando o indivíduo, apesar do déficit cognitivo, é sim capaz de tomar decisões, mesmo que ele precise de ajuda e suporte profissional ou da família. Então, tudo tem que ser analisado com cuidadinho… e cada caso é um caso.
É. Tudo depende. Bem vindo ao mundo real, em que as coisas têm vários tons de cinza (UÔU!) e não são só preto ou branco.
 Postado por Divã de Einstein 

domingo, 12 de janeiro de 2014

Nordeste com retrogosto

Por Nirlando Beirão
O Nordeste de Amores Roubados – a minissérie que a Globo exibiu esta semana, na sequência da nefanda Amor à Vida é o Nordeste pós-Lula, afluente, industrial, eventualmente próspero, de casarões com adegas e carrões SUVs, mas que continua ancorado no patriarcalismo, empresários modernos com alma de coronéis obsoletos.
Um Nordeste cujo produtor de vinhos enverga uma barba digna de oligarca da República Velha, enquanto a filhota recém-chegada das Oropas confere ao Sertão – Sertão é, aliás, o hiperbólico e rebarbativo nome do município – o definitivo toque de modernidade, projetando-se de uma ponte do São Francisco, no deleite vertiginoso do bungee jump.
Mulheres que se jogam é a metáfora aparentemente fácil que contrapõe o predomínio machista às angústias de senhoras sexualmente desassistidas – e para cujo reconforto afetivo entra em cena o bonitão urbanizado e nem por isso menos cafajeste, caracterizado no ofício sabidamente insidioso de sommelier, especialista em gosto e retrogosto.
É interessante perceber, na Globo, a prospecção de novos formatos de dramaturgia, ainda que relegados ao horário das corujas. Vale também festejar a maturidade de atores crescidos no Projac (Cauã Reymond, Isis Valverde, Murilo Benício). Pena que ninguém cogitou, para o papel de coronel arrependido, do governador Eduardo Campos.

O mérito maior do autor George Moura e do diretor José Luiz Villarim) é revelar um Nordeste além da caricatura. A começar pelo sotaque mais sutil, mais nuançado, sem o exagero das produções à Jorge Amado. Fugir do sotaque forçado é fugir da prisão do estereótipo. Patrícia Pillar, que tem conhecimento de causa, deve ter ajudado no coaching.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

"Por que você escreve essas coisas de preto?"

Foto: SeCom Bahia

Recentemente me perguntaram  por que escrevo " essas coisas de preto" Não foi só uma vez. Poderia dizes que escrevo " coisas de preto" porque sou preto, ou porque quero afirmar ou externalizar a minha identidade. Assim como seria possível dizer que escrevo a fim de encontrar, por meio das "coisas de preto", outros pretos - inserção, acolhimento e proteção. Posso também afirmar  que escrevo para que outros pretos se protejam  e encontrem pares de vivências. Tudo isso é motivação e não deixa de ser verdade. 

E mais. É válido que escrevo "coisas de preto" para denunciar tanto o genocídio da nossa juventude negra quanto a falta de oportunidade e os obstáculos impostos especificamente aos negros quando se fala em escolaridade e mercado de trabalho. Ou, ainda para derrubar padrões que excluem  o corpo negro ou que o coisificam por meio da hipersexualização. Escrevo, "coisas de preto"  por isso também não é mentira.

Escrevo "coisas de preto" por querer ser um contador de histórias. E quero também contar a nossa história, como muitos outros negros já fazem há mais tempo e melhor que eu. O protagonismo me impulsiona: preto contando "coisas de preto"  

Tô cansado de não negros dizendo como devemos ser, pensar e agir. De forma geral, isso só resultou em exclusão, em marginalização, em estigmatização e em genocídio de quem é preto. Existem as exceções. Existem, mas, por mais que haja um nível de empatia transcendental, o branco nunca vai dar de cara com os mesmos obstáculos, quem dirá ter que superá-los. Aliados são mais que bem-vindos. A luta precisa de vocês. Mas o protagonismo é nosso, é preto.  

É tempo de nossa voz ser ouvida e respeitada. Há um pensamento coletivo de que nós, pretos, somos radicais quando falamos de racismo, enquanto brancos são sensatos  falando do mesmo assunto com as mesmas palavras. Escrevo para acabar com essa lucidez seletiva que só legitima o outro, o não preto, para contar as nossas " coisas de preto".

Tem quem cante, tem quem atue, tem quem produz, tem quem legisla, e tem quem debate "coisas de preto" . Eu escrevo. É a arma que possuo. Posso até não manejá-la da melhor forma - ainda. tenho noção que o aprendizado é constante e a vontade de acertar o alvo é grande. É também por isso que escrevo essas "coisas de preto".

Sigo com o racismo na mira: uma hora ele não escapa!

Texto escrito por Higor Faria - preto, publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no https://medium.com/@higorfaria